O conceito, que propõe que as empresas adotem práticas mais éticas e transparentes em seus ambientes institucionais e em relação aos entes públicos, também precisa fazer parte das preocupações dos grupos editoriais
Publicado originalmente em PublishNews, Lizandra Magon de Almeida*, 29/05/2024

O mundo corporativo resumiu as preocupações sociais que uma empresa deve ter a uma sigla: ESG. Em inglês, environment, social and governance, ou meio ambiente, social e governança. Faz bem pouco tempo que o mercado editorial começou a se preocupar com essa sigla, que já está na boca da maioria das empresas desde pelo menos o início deste século.
É até fácil entender que precisamos nos preocupar com o meio ambiente, especialmente por sermos uma indústria baseada em papel e equipamentos eletrônicos. A desigualdade social e de acesso no Brasil, as eternas mazelas da educação e a visão retrógrada da direita sobre a cultura são apenas algumas das questões sociais que tiram nosso sono e nos aproximam das discussões sobre o aspecto social. Quando a Liga Brasileira de Editoras, a Libre, escolhe a bibliodiversidade como mote de seu trabalho associativo em prol de editoras independentes sem dúvida é no social que essa decisão se baseia.
Mas o G ainda está muito distante de nós como conceito. No entanto, em um país com as maiores compras públicas de livros do mundo, essa preocupação deveria estar no centro das nossas conversas. Foi o que eu disse ano passado na Festa Literária Internacional de Paraty, da Flip, quando, a convite do PublishNews, participei de uma mesa sobre ESG.
Para uma associação de pequenas empresas produtoras de livros, independentes de corporações, grandes financiamentos públicos ou privados e heranças que não sejam o próprio amor aos livros, a governança – mesmo que não receba essa nomenclatura – está na ordem do dia. Uma das nossas missões, ao propor a bibliodiversidade do mercado de livros – em consonância com a própria diversidade cultural dos mais variados grupos populacionais deste país – é vigiar para que as compras públicas, responsáveis por 70% dos livros comprados no Brasil a cada ano, garantam a possibilidade de nossas associadas concorrerem em pé de igualdade com grandes corporações, muitas vezes multinacionais.
E por isso estamos atentas ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), e também a compras de governos estaduais e municipais de todo o Brasil. As peculiaridades de um objeto como o livro – cuja publicação está atrelada a contratos de direitos autorais que tornam a editora a única representante do autor perante os compradores – provoca muitas discussões diante de leis que regulam as compras públicas e têm o preço baixo como principal critério de decisão. Só que dois livros não são comparáveis como são duas caixas de giz ou dois frascos de sabonete líquido. A lógica da Lei de Licitações já suscita discussões suficientes quando o assunto é livro, mas a burocracia faz surgir desvios que, apesar de legais, são antiéticos e levam a distorções enormes, se distanciando da transparência que deveria nortear esse processo. É o caso do “SRP – Sistema de Registro de Preços”.
De uma maneira muito simples, para evitar a tomada de preços a cada compra, uma prefeitura (ou outro ente federativo) pode se basear na tomada de preços feita por outra prefeitura em uma compra anterior, por meio da Ata de Registro de Preços (documento em que são registrados os preços, fornecedores, condições de fornecimento, dentre outros dados, no SRP). A partir daí, é possível comprar sem chamamento ou edital público, evitando todas as etapas de uma licitação. A compra de uma pequena cidade pode servir como parâmetro e base para outras prefeituras, através da adesão à Ata de Registro de Preços, abrindo caminho para as distorções.
Porque estamos atentas a essas constantes tentativas de favorecimento, tomamos conhecimento de uma compra, nesse formato, da Prefeitura de Guarulhos de mais de R$ 4 milhões, distribuídos em 100 títulos de uma mesma editora.
Uma prefeitura adquirir de uma vez 100 títulos da mesma editora já seria motivo para um ofício nosso questionando a transparência e a bibliodiversidade à qual os alunos desse município teriam acesso com esses livros. Mas havia mais. A compra por “Ata de Registro de Preços” nos levou a comparar preço a preço do documento publicado no Diário Oficial com o site da própria editora. E o resultado foi assustador.
Estamos sempre buscando uma remuneração justa para os nossos livros, que quando comprados em volumes nem sempre tão grandes são vendidos a preços unitários muito baixos, justamente porque a Lei de Licitações se baseia no menor preço. Mas ainda encontramos quem consiga convencer uma das maiores prefeituras do Estado de São Paulo a comprar não só com o preço cheio, mas somando mais de R$ 1 milhão de sobrepreço.
A LIBRE impugnou o pregão eletrônico e acionou o Ministério Público da cidade, comprovando a irregularidade da compra, que foi suspensa sem data para ser retomada.
Esse caso exemplifica três principais problemas das compras públicas brasileiras, que se tornaram alguns nossos principais focos de atenção: a falta de transparência e bibliodiversidade na seleção das obras que são adquiridas por prefeituras para seus alunos, a concentração das compras nas mãos de grandes grupos editoriais e a falta de lisura na tomada de preços, com prejuízo real para o ente público.
Preferíamos estar em nossas pequenas empresas, pensando nos próximos títulos que queremos publicar, de autoras e autores diversos como a diversidade étnica e social brasileira. Mas dedicamos parte do nosso tempo a garantir que a monocultura humana, como diz o filósofo e ambientalista Ailton Krenak, não tome conta das mentes das nossas crianças e jovens.

* Lizandra Magon de Almeida é editora e Presidenta da LIBRE – Liga Brasileira de Editoras.